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Crítica Penal Descumprimento da lei como ideologia política

O Estado democrático de Direito sob estresse.

A série Em Nome do Céu, disponível em streaming, aborda a prática de crimes por integrantes de uma comunidade mórmon pertencente à Igreja SUD (Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) que desejavam se opor a qualquer interferência do Estado. A revolta teve início quando o líder do grupo passou a pregar que a liberdade concedida pelo Pai Celestial isentaria seus irmãos de pagar tributos. Depois disso, o grupo tentou se opor a qualquer tipo de ingerência estatal em seus hábitos. Algo muito parecido com o que, na vida real, foi idealizado por Osho na Rajneeshpuram, uma comunidade utópica e autossuficiente fundada no condado de Wasco, em Oregon, nos anos 1980 — a quem interessar, recomendo ver o excelente documentário Wild Wild Country.

A obrigação de se submeter ao Estado pode ser questionada de diversas formas. A prática de um crime é um bom exemplo. Pagar tributos? Muita gente não gosta. E por isso há sempre um ambiente tensionado por aqueles que não aceitam seus compromissos fiscais. A novidade é que esse estressamento das instituições vem gradualmente abandonando a clandestinidade para ganhar corpo enquanto ideologia política ostensiva.

Javier Milei concedeu recentemente uma entrevista elogiando sonegadores e desdenhando de quem paga impostos [1]. Donald Trump, aquele que se intitula “líder do mundo livre” [2], bombardeou o Irã sem autorização do Congresso americano, descumprindo o artigo 1° da Constituição. E suas ordens mais recentes sobre imigração, pautas econômicas etc. tem deixado claro que a lei e o Poder Judiciário não são preocupações suas.

Esse estado de ilegalidade também é notado no Brasil. Os exemplos são muitos. Durante a pandemia, decisões políticas variadas, em todos os níveis da federação, afrontaram as mais básicas premissas legais de proteção da saúde pública (para lembrar: o caos de oxigênio em Manaus). Hoje sabe-se que a Lava Jato foi um celeiro de instrumentalização privada de funções públicas por Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e seus asseclas. Escrevi sobre isso lá em 2019 [3]. E o que já veio à tona sobre a tentativa de golpe em 8 de Janeiro deixou bem claro que agentes públicos e segmentos da população colocaram-se acima da lei e das instituições.

Obviamente que essa postura institucional normaliza a narrativa de que não se sujeitar ao ordenamento jurídico seja algo razoável. Léo Lins, após ter sido condenado a oito anos de prisão por destilar preconceito em seu stand up, vem participando de um novo show que segue o mesmo roteiro criminoso; com o diferencial de que telefones estão proibidos [4]. Quase uma súplica pela decretação de sua própria prisão preventiva. Uma postura covarde bem semelhante à de Eduardo Bolsonaro ao promover, sob a aba de Trump, novos atentados ao regime democrático.

Esse movimento de desprezo pelo Estado democrático de Direito é uma pauta da extrema direita em nível mundial. Alguns líderes políticos estão descontentes com um princípio basilar de qualquer democracia: há muito nos lembra Lenio Streck [5] que, havendo tensão entre poderes, a última palavra é do Judiciário.

É bem fácil entender o porquê desse ódio contemporâneo a quem desempenha essa moderação: todo tirano deseja governar livremente, sem qualquer interferência externa. Se a lei e o Judiciário se opõem a isso, então melhor acabar com ambos. Ponha isso tudo numa panela e acrescente o controle de narrativas pelas redes sociais para produzir o bolo perfeito: o Estado de Direito é um entrave ao regresso do messias que todos aguardam. Não é por acaso que a fundamental separação entre Estado e igreja vive seus piores dias. Quem somos nós, humanos, para dizer o que o Salvador pode ou não fazer?!

Conceito de ideologia

John Thompson [6] desenvolveu um interessante estudo da teoria da ideologia, aplicando suas conclusões à teoria social contextualizada na era dos meios de comunicação de massa. Ele propõe dois modelos diversos para a sua significação: concepções neutras concepções críticas de ideologia.

As primeiras são aquelas utilizadas para caracterizar fenômenos ideológicos, sem implicar que esses fenômenos sejam, necessariamente, enganadores e ilusórios com os interesses de algum grupo particular. Nesse rumo, a palavra ideologia significa a representação de um aspecto da vida ou uma forma de investigação social, independentemente de estar relacionada à transformação ou à preservação da ordem social. Estas noções geram categorias ordenadas nos grupos ‘ismos’, tais como o socialismo, o capitalismo, o comunismo etc. Considera-se neutra porque, neste sentido, “a ideologia pode ser necessária tanto para manter submissos os grupos, em sua luta contra a ordem social, como para os grupos dominantes, na sua defesa do status quo” [7].

Na segunda acepção, a palavra ideologia é empregada num sentido crítico, negativo ou pejorativo. Aqui, todo modelo que seja taxado de ideológico é tido como enganador, ilusório ou parcial. A própria caracterização de fenômenos como ideologia traz consigo um criticismo implícito ou a própria condenação desses fenômenos [8]. Esta era a visão de Marx, para quem a ideologia seria um sistema de representações que escondem, enganam e que, ao fazer isso, serve para manter relações de dominação das classes dominantes às classes inferiores [9].

A partir dessa distinção, Thompson propõe um conceito crítico de ideologia que leva em consideração ingredientes das diversas categorias revisadas. Seu ponto de partida é de índole marxista, ao considerar que o conceito de ideologia está, necessariamente, relacionado ao conceito de dominação, ao modelo assimétrico de poder travado entre duas ou mais relações sociais [10]. Nesse rumo, formas simbólicas contestatórias de um determinado status quo não seriam, para Thompson, ideologias no sentido estrito proposto por ele.

Mas a tese vai além da matriz marxista em relação a três aspectos:

a) Thompson não considera que as formas simbólicas tenham de ser errôneas ou ilusórias para que possam ser consideradas ideologias, isto é, reconhece que o sentido negativo é contingente, mas não necessário: o que interessa, primordialmente, não é a verdade ou falsidade das formas simbólicas, mas sim as maneiras como estas formas servem, em circunstâncias particulares, para criar ou manter situações de dominação;

b) as relações simbólicas de dominação não ocorrem apenas nas relações de classes — como dizia Marx —, mas também em outras relações sociais, não necessariamente associadas ao fluxo do capital: entre pais e filhos, entre grupos étnicos, entre Estado e indivíduo etc., travam-se estratégias simbólicas de poder;

Na segunda acepção, a palavra ideologia é empregada num sentido crítico, negativo ou pejorativo. Aqui, todo modelo que seja taxado de ideológico é tido como enganador, ilusório ou parcial. A própria caracterização de fenômenos como ideologia traz consigo um criticismo implícito ou a própria condenação desses fenômenos [8]. Esta era a visão de Marx, para quem a ideologia seria um sistema de representações que escondem, enganam e que, ao fazer isso, serve para manter relações de dominação das classes dominantes às classes inferiores [9].

A partir dessa distinção, Thompson propõe um conceito crítico de ideologia que leva em consideração ingredientes das diversas categorias revisadas. Seu ponto de partida é de índole marxista, ao considerar que o conceito de ideologia está, necessariamente, relacionado ao conceito de dominação, ao modelo assimétrico de poder travado entre duas ou mais relações sociais [10]. Nesse rumo, formas simbólicas contestatórias de um determinado status quo não seriam, para Thompson, ideologias no sentido estrito proposto por ele.

Mas a tese vai além da matriz marxista em relação a três aspectos:

a) Thompson não considera que as formas simbólicas tenham de ser errôneas ou ilusórias para que possam ser consideradas ideologias, isto é, reconhece que o sentido negativo é contingente, mas não necessário: o que interessa, primordialmente, não é a verdade ou falsidade das formas simbólicas, mas sim as maneiras como estas formas servem, em circunstâncias particulares, para criar ou manter situações de dominação;

b) as relações simbólicas de dominação não ocorrem apenas nas relações de classes — como dizia Marx —, mas também em outras relações sociais, não necessariamente associadas ao fluxo do capital: entre pais e filhos, entre grupos étnicos, entre Estado e indivíduo etc., travam-se estratégias simbólicas de poder;

c) as formas simbólicas não são meras representações capazes de articular ou obscurecer relações sociais ou interesses constituídos num nível pré-simbólico, mas, ao contrário, estão contínua e criativamente implicadas na constituição das relações sociais como tais. Assim, as ideologias não produzem apenas relações de sentido tendentes a manter uma relação de dominação, mas, também, a desenvolver a continuidade desta relação [11].

A esses três aspectos da relação de dominação de toda ideologia, Thompson agrega um último fator: a necessidade de as estratégias de exercício do poder simbólico serem analisadas no contexto cultural onde elas são instrumentalizadas. O discurso sobre direitos humanos — exemplifica [12] — pode representar a manutenção de um status quo num determinado contexto, mas pode ser considerado subversivo noutro. Em síntese: para Thompson, ideologia é o instrumento de produção de sentido que atua, num contexto histórico-social determinado, para estabelecer e sustentar relações de poder assimétricas.

Aniquilação do Estado democrático de Direito como ideologia política

Há algo de novo nos exemplos de estado de ilegalidade que citei acima. O descumprimento do direito não é privilégio do mundo atual. Vou ficar no meu quadrado. No segmento das ciências criminais, a criminologia já nos mostrou que há uma diferença entre violar a lei penal praticando um crime (criminalização primária) e ser efetivamente alcançado pelo poder punitivo (criminalização secundária). Ser criminoso é diferente de ser criminalizado. Criminosos todos somos. Todos nós, em alguma medida, violamos a lei (só para dar um exemplo: transferir pontos de multas de trânsito para outras pessoas é crime de falsidade ideológica, ok?). Mas nem todos nós ficamos submetidos ao poder punitivo. Ser criminalizado pressupõe submeter-se a um processo seletivo de escolha que normalmente recai sobre pessoas vulneráveis. Basta pesquisar a raça preponderante no sistema prisional para entendermos isso.

Zaffaroni, no clássico Em Busca das Penas Perdidas, já nos falava da incoerência do direito penal: como justificar um modelo jurídico que, caso aplicado full, emperraria o sistema social? Todos nós iríamos em cana. Por isso é que o sistema penal deve obrigatoriamente selecionar o público que será ideologicamente controlado. O Direito Penal foi feito para não funcionar. Ele é um instrumento de controle social meticulosamente pensado e alimentado.

A significação iluminista de violação da lei — em especial, da lei penal — trazia consigo um traço de identidade cultural bem claro: apesar da seletividade acima referida, o crime era algo normalmente clandestino, uma ação desvalorada. Afrontar o direito não era motivo de orgulho, tampouco caracterizava bandeira política.

Esse é o ponto que hoje a gente percebe estar em transformação. Pipocam em nosso colo exemplos diários de que segmentos da política mundial assumiram o compromisso de aniquilar o Estado democrático de Direito. Está em andamento um movimento mundial de expulsão do Poder Judiciário do centro de gravidade do regime democrático. E não se trata de apenas substituí-lo por um tirano qualquer que ocupe a chefia do Poder Executivo. Eles são instrumentos de oligopólios tecnológicos que não desejam o direito por perto, pois não querem interferência alguma em suas decisões.

Maria Helena Chauí nos fala na atropia e na acronia do mundo atual [13]. As redes sociais retiram a nossa capacidade de nos relacionar com o espaço e com o tempo. De questionarmos a verdade. A verdade me é dada por aquilo que minhas relações digitais transmitem. E quando sou capturado por esse ambiente, a minha domesticação digital é plena. Viro cúmplice dessa nova subjetividade. O resultado disso é que vivemos uma fantasia de nos sentirmos livres porque apertamos este ou aquele botão. Quando, na verdade, essa tomada de decisão não é mais nossa. A decisão nos é dada sem percebermos. Fecha-se, com isso, o círculo de controle social.

Então, os tiranos que vão e vem são meros personagens de uma ideologia política que tem por trás a substituição do regime democrático por um regime que talvez sequer saibamos exatamente o que será. Mostrar a todos que o descumprimento da lei é possível e recomendável é apenas uma estratégia para que o Estado Democrático de Direito seja assassinado. Quanto mais caos, mais difícil captar a verdade. Uma população confusa é mais fácil de ser flambada. Por isso é que normalizar o descumprimento da lei e o descrédito de instituições seja uma das estratégias dessa ideologia política que perigosamente se avizinha como instrumento de dominação.

Não é necessário ter o dom da premonição para antevermos que, se nossa democracia sucumbir, em seguida estaremos debatendo a convocação de uma nova assembleia constituinte. Será o fechamento perverso do ciclo anti-democrático. E pior: vendido como se democracia fosse.

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[1] Aqui

[2] Aqui

[3] Aqui

[4] Aqui

[5] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (e)m Crise.  Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, pp. 37-38.

[6] THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna. 5 ed. Trad. por Carmen Grisci et al. Petrópolis : Vozes, 2000, pp. 43-99.

[7] THOMPSON, John. B. Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 72-73.

[8] THOMPSON, John. B. Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 73.

[9] V. MARX, Karl. Las Luchas de Clases en Francia de 1848 a 1850. [s.t.]. Moscú : Progreso, 1979.

[10] THOMPSON, John. B. Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 76.

[11] THOMPSON, John. B. Ideologias e Cultura Moderna, cit., pp. 76-79.

[12] THOMPSON, John. B. Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 18.

[13] Aqui

  • é doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS e advogado fundador do Zenkner Schmidt, Aspar Lima & Rocha Neto Advogados Associados.