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O tecnofeudalismo

“O tecnofeudalismo é uma espécie de capitalismo canibal”

O economista francês Cédric Durand, que participou dias atrás da nova edição do ciclo La Noche de las Ideas, com o patrocínio da revista Ñ, publicou no ano passado, na Argentina, seu livro Tecnofeudalismo: crítica de la economía digital (Ediciones La Cebra e Kaxilda), um exaustivo estudo a partir de pesquisas no Centro de Economia Paris Nord e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris.

Durand argumenta que existe uma nova mão invisível dos algoritmos que converte empresas como Google Facebook em uma espécie de aspiradores digitais de riqueza, e que estariam nos conduzindo a uma regressão tecnofeudal na qual gigantes forças digitais e improdutivas dominarão a sociedade e a economia, fazendo com que os poderes políticos do Estado percam força.

 

A entrevista é de Julián Varsavsky, publicada por Clarín, 29-01-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Você levanta a hipótese tecnofeudal: as Big Techs – Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft – recriam um pouco as lógicas políticas e econômicas do tempo feudal. As grandes plataformas e ambientes digitais seriam bens imobiliários desmaterializados, fortalezas “medievais” que colonizam o ciberespaço e o depredam: ganham todo o terreno de seu negócio e adquirem a concorrência e empresas complementares. Como fundamenta essa metáfora?

O servo camponês era muito apegado à terra: não pertencia ao senhor feudal, mas à terra, que, sim, era desse senhor. Ao utilizarmos o Facebook ou o Google, passamos a ser indissociáveis dos dados que geramos na terra digital. A partir dessas pegadas, cria-se uma relação de extrema dependência da qual é difícil escapar porque nos facilitam a vida.

É possível viver sem usar nenhum serviço do Google? É possível, mas complicaria muito nossa existência! Eu tentei compreender o que o capitalismo faz com o digital: longe de favorecer a autonomia dos indivíduos, o aspecto mais marcante da economia digital é o retorno a relações de dependência.

 

Que traços estruturais permitem que a lógica de funcionamento da economia digital seja tão diferente?

onda de monopolização na época digital responde a razões estruturais. A terra agrícola, quanto mais você a explora, menor será o seu rendimento. E existe um limite de terra disponível. Ao contrário, na indústria você pode aumentar a quantidade produzida e menor será o custo unitário. Você faz economia de escala.

Nas atividades digitais, quanto mais você utiliza seu software ou serviço, maior será a sua rentabilidade. E não importa se você vende um software ou cem, pois terá gasto o mesmo para produzi-lo.

Aqueles que colonizam primeiro a maior quantidade de dados de usuários – Facebook e Google – têm uma vantagem abismal em relação a outros competidores. Essa combinação entre as economias de escala e a acumulação originária dos dados é a fonte da extrema monopolização na era digital.

 

Seu livro aponta que – assim como acontece com a propriedade feudal da terra – no mundo digital o “terreno” tem um caráter rentista, antes que produtivo (é possível obter lucro sem produzir). Por quê?

No capitalismo existem duas maneiras de obter lucros. A primeira é a exploração: você utiliza trabalhadores e paga para eles menos do que geram. A predação digital está em outro nível: captura valor criado em outra parte (apropriam-se de riqueza que não produzem nessa empresa). Esta é uma dimensão essencial para as empresas que controlam intangíveis como bancos de dados e software.

Também exploram seus trabalhadores no sentido clássico, mas a maior parte de seus lucros provém da mais-valia extraída por outras empresas. A intensificação dessa lógica de predação permite compreender o inadequado desenvolvimento econômico contemporâneo.

Se você investe na predação, não investe na produção. Para os gigantes digitais, a lógica do investimento não vai no sentido de acumulação de meios de produção, mas de meios de predação. A coleta digital de dados é o Santo Graal do tecnofeudalismo predador da economia produtiva.

 

Refere-se a que a Apple comprou a assistente virtual Siri, o Facebook engoliu o Instagram e o WhatsApp, por 15 bilhões de dólares – o valor de seus 450 milhões de usuários –, e Google devorou o YouTube? Os dados são o valor mais cotado da economia mundial, superior ao petróleo?

Exato. Detectar essa lógica permite compreender por que nossas economias estão esgotadas e as desigualdades extremas persistem. Não só não há investimento suficiente, com também não ocorre onde estão nossas verdadeiras necessidades: a transição para tecnologias ecológicas, a saúde, a qualidade de vida. O tecnofeudalismo é uma espécie de capitalismo canibal.

 

Fomos pegos desprevenidos? Percebemos tarde demais o que estávamos entregando voluntariamente e, assim como os servos, nos tornamos dependentes da terra digital, acreditando-nos livres? É possível atenuar isso?

A legislação em matéria digital não leva em conta que todos os esforços das Big Techs buscam aumentar o controle sobre o comportamento dos indivíduos. A solução não reside no retorno a uma mítica saudável concorrência. É preciso dar aos poderes públicos, de uma escala local a uma transnacional, os meios para uma regulação do novo capital digital.

O primeiro passo é que as empresas criadoras dos algoritmos se tornem responsáveis por seus efeitos: discriminação, vícios, sofrimento psicológico e consumismo exacerbado. As auditorias públicas precisam estabelecer os efeitos dos algoritmos e sobre tal base o poder público deve regulamentá-los. Depois, precisamos definir como os nossos dados podem ser usados.

A ideia de um autocontrole individual é absurda. O consentimento do clique nas letras pequenas dos “termos e condições” é ineficaz para impedir a apropriação de dados. A abundância de informações concentradas pelas Big Techs é a matéria-prima indispensável para os serviços públicos do futuro. É preciso que esses dados estejam disponíveis para transformá-los em um bem comum.

 

Fonte: Cédric Durand

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